O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou, em setembro, um dos precedentes mais transformadores do Direito Civil contemporâneo. No Recurso Especial nº 2.124.424/SP, a 3ª Turma decidiu que, diante de bens digitais inacessíveis — como criptomoedas, contas em nuvem, arquivos e perfis monetizáveis —, o juiz poderá instaurar um “incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais”, conduzido sob segredo de justiça e supervisionado por um “inventariante digital“.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, reconheceu a lacuna legislativa e propôs uma solução processual inédita: o profissional nomeado terá a missão de acessar os dispositivos, mapear o conteúdo e classificar o que tem natureza patrimonial (transmissível) e o que é existencial (intransmissível).
“É dever do juiz compatibilizar, de um lado, o direito dos herdeiros à transmissão de todos os bens do falecido, e de outro, os direitos da personalidade, especialmente a intimidade do falecido e/ou de terceiros”, afirmou Andrighi.
A ministra fundamentou seu voto nos incisos X, XII e XXX do artigo 5º da Constituição Federal, reforçando que o patrimônio digital se insere em uma zona híbrida: é bem jurídico, mas pode conter expressões da intimidade que exigem tutela reforçada.
Divergência e novo paradigma sucessório
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva abriu divergência parcial. Para ele, o inventariante tradicional já teria legitimidade para acessar os bens digitais, sem necessidade de criar uma figura adicional. A criação de um novo incidente processual, argumentou, poderia “onerar e burocratizar” o inventário.
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A divisão interna, porém, não impediu que o tribunal formasse maioria. O voto da ministra Andrighi consagrou a teoria da transmissibilidade condicionada: a herança digital não é universal, mas ponderada pela natureza do bem — um entendimento que, segundo especialistas, aproxima o Brasil das discussões éticas e constitucionais que já ocorrem na Europa.
Herança digital como cláusula de ponderação constitucional
Para a advogada Amanda Martins, diretora do Instituto Bertol de Direito, Conformidade e Normas Internacionais (IBDCNI), a decisão “marca a consolidação de um novo paradigma jurídico, que reconhece a dimensão existencial da vida digital”.
“O reconhecimento do inventariante digital pelo STJ atua como um catalisador para a futura regulamentação legislativa sobre sucessão digital e proteção de dados post mortem”, avalia Martins.
A constitucionalização da sucessão digital
A especialista observa que o tribunal aplicou o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) como eixo de interpretação da sucessão no ambiente virtual. O voto da ministra Nancy Andrighi foi construído sobre uma arquitetura de ponderação entre direitos fundamentais colidentes: o direito à herança (art. 5º, XXX, CF) e os direitos à intimidade e ao sigilo (incisos X e XII).
“A ministra não criou um novo direito, apenas revelou o conteúdo constitucional que já existia. O patrimônio digital exige o mesmo equilíbrio entre dignidade e herança que o STJ historicamente aplicou em conflitos de direitos fundamentais”, observa Martins.
A advogada explica que a decisão emprega, ainda que sem nomear, o método de ponderação de princípios desenvolvido por Robert Alexy, no qual nenhum direito é absoluto — e a solução justa é aquela que harmoniza os valores em tensão. Isso significa que o direito à herança e os direitos da personalidade devem ser ponderados, e não hierarquizados.
Segundo Martins, o STJ operou como intérprete integrador, não como legislador: preencheu o vácuo deixado pelo Código Civil de 2002, que não previa bens intangíveis de valor econômico ou emocional. O acórdão, explica, transforma a sucessão digital em uma cláusula de ponderação constitucional, guiada pelos princípios da proporcionalidade e da finalidade — conceito inspirado na LGPD.
Nesse sentido, o acórdão não se limita a resolver um litígio patrimonial: ele reinterpreta o conceito de herança à luz da dignidade humana, aproximando a sucessão da lógica de proteção de dados e privacidade.
“O Brasil vivia um vazio normativo em torno da herança digital. O STJ decidiu preenchê-lo com base em princípios constitucionais e na LGPD, sem invadir a competência do Congresso”, acrescenta.
O Brasil no cenário internacional
Ela também relaciona o precedente à teoria do tratamento de dados pessoais post mortem, que ainda não está consolidada no Brasil. A advogada reforça que a decisão aproxima o Brasil da tendência europeia de ponderação proporcional entre herança e intimidade. Ela cita três experiências que inspiram o modelo brasileiro:
Alemanha — Caso Facebook Erblasser (2018): o Tribunal Federal de Justiça permitiu o acesso dos pais à conta da filha falecida, mas determinou filtragem prévia de mensagens existenciais, reconhecendo a natureza mista dos bens digitais. Este caso garantiu aos pais de uma adolescente falecida o acesso restrito à conta da filha, mas com filtragem prévia de conteúdos existenciais — modelo que ecoa a solução adotada pelo STJ.
França — Loi pour une République Numérique (2016): garante a qualquer usuário o direito de designar herdeiros digitais ou determinar a exclusão de seus dados após a morte.
Itália — Codice Civile, art. 587: introduziu a figura do curador digital testamentário, que executa o testamento eletrônico conforme a vontade do falecido.
“O STJ adotou o mesmo raciocínio europeu, mas com sotaque brasileiro — a ponderação é constitucional, não contratual. Aqui, o equilíbrio nasce da jurisdição, não do mercado”, explica Martins.
Com isso, o Brasil se torna o primeiro país latino-americano a reconhecer judicialmente a transmissibilidade condicionada de bens digitais — um marco que o coloca à frente de vizinhos como Chile e Argentina, onde o tema ainda é tratado como questão de privacidade, não de herança.
Para Martins, o Brasil segue a mesma trilha interpretativa, “ainda que por via judicial”.
“A decisão legitima o acesso condicionado, mas reforça que a herança digital não é um direito absoluto: ela existe dentro dos limites da personalidade e da intimidade”, pontua.
A advogada defende que o Legislativo aproveite o precedente para elaborar uma lei específica, definindo conceitos de bens digitais, parâmetros para o inventariante digital e regras de cooperação com plataformas. Enquanto isso não ocorre, o acórdão atua como bússola jurídica, orientando juízes e famílias em um território antes nebuloso.
O vácuo operacional e o dilema humano
A advogada Amanda Fontes, especialista em Direito Digital e Planejamento Sucessório, considera a decisão do STJ um avanço institucional, mas alerta para desafios técnicos e éticos que o novo incidente ainda não resolve.
“A decisão forneceu um procedimento onde antes havia vácuo. Mas trouxe também complexidade adicional, custos não dimensionados e questões práticas que só o tempo e a regulamentação futura — legislativa ou via CNJ — poderão responder.”
Amanda Fontes
Os desafios técnicos e a necessidade de padronização
Fontes explica que o acórdão não estabelece prazos, formato de laudo ou cadeia de custódia dos dados.
“Cada tribunal precisará definir, por conta própria, como esse inventariante digital será nomeado, remunerado e fiscalizado”, comenta.
Isso pode gerar decisões divergentes entre juízos e criar insegurança processual.
“Um mesmo caso pode ter decisões completamente diferentes em São Paulo e em Pernambuco, porque não há ainda um protocolo unificado de perícia e guarda de dados digitais”, pondera.
Ela defende que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) formule uma resolução específica, padronizando os critérios de nomeação, o modelo de relatório e as regras de sigilo. Para evitar essa fragmentação, ela propõe que o CNJ crie uma resolução de padronização nacional, com três pilares:
Cadastro de inventariantes digitais certificados, com qualificação técnica obrigatória.
Protocolos de sigilo e rastreabilidade, para assegurar que apenas os dados necessários sejam acessados.
Modelos de relatórios técnicos unificados, garantindo segurança e previsibilidade processual.
“Sem parâmetros claros, o risco é transformar uma solução jurídica em um novo problema procedimental”, observa. “O Brasil precisa de uma engenharia institucional para a herança digital. Não basta criar a função; é preciso regular quem a exerce, como e com quais limites de acesso”, resume Fontes.
A dimensão ética: entre patrimônio e intimidade
A advogada também chama atenção para o aspecto filosófico do julgamento. Segundo ela, o STJ trouxe à tona uma questão que o Direito ainda reluta em enfrentar: a sobreposição entre patrimônio e intimidade.
Ela lembra que um mesmo dispositivo pode abrigar contratos de investimento, fotos pessoais e mensagens sensíveis, o que exige uma triagem altamente criteriosa.
“O Judiciário precisará desenvolver protocolos de segregação de dados, talvez por meio de relatórios técnicos sob guarda judicial. A perícia digital não pode ser confundida com devassa”, diz.
Fontes vê o inventariante digital como guardião da intimidade, e não apenas como perito.
“O inventariante digital precisa entender que cada byte que ele acessa é parte da biografia de alguém. É um trabalho técnico, mas também moral.”
A advogada alerta que a decisão cria, de forma indireta, uma nova categoria de responsabilidade ética: a da tutela post mortem da personalidade. Ela destaca que, ao mesmo tempo em que o STJ protege a intimidade, ele reconhece que a privacidade também pode ter valor patrimonial, o que coloca o Judiciário diante de uma fronteira delicada — entre o direito de lembrar e o direito de esquecer.
“Há um risco de fetichização da memória digital. Nem tudo precisa ser herdado; alguns dados precisam simplesmente descansar”, reflete Fontes.
Fontes enfatiza ainda o custo e a escassez de profissionais especializados. “O inventariante digital é um perito judicial em ambiente cibernético, com responsabilidades civis e criminais. Mas hoje não há sequer um cadastro nacional desses profissionais”, observa. Para ela, o próximo passo deve ser institucionalizar a função, com exigências técnicas e certificação.
Em análise, Fontes afirma que o acórdão também inaugura uma nova ética sucessória: a do respeito à identidade digital.
“Não se trata de vasculhar um legado, mas de tratá-lo com a mesma reverência que o Direito já dedica à memória e à honra”, resume.
O contraste entre as duas advogadas revela o alcance — e os limites — do precedente. Enquanto Amanda Martins interpreta a decisão como expressão de um novo constitucionalismo digital, que amplia a proteção da personalidade no pós-vida, Amanda Fontes vê nela o desafio de transformar teoria em prática: quem fiscaliza o inventariante? Quem paga o perito? Onde termina a perícia e começa a violação da privacidade?
Para Martins, o acórdão integra o sistema; para Fontes, ele expõe suas falhas estruturais. Mas ambas concordam que o STJ “fundou um novo campo de disputa jurídica”: a gestão da identidade digital como bem jurídico.
O impacto patrimonial: bilhões em ativos órfãos
O planejador financeiro da EQI Investimentos Allan Teixeira lembra que, enquanto o debate jurídico amadurece, o problema financeiro já é concreto. Estima-se que bilhões de reais em criptoativos, milhas e créditos digitais estejam “órfãos”, sem acesso possível, porque os titulares morreram sem deixar instruções.
“No cenário atual, onde grande parte das transações ocorre no ambiente digital, a herança digital torna-se um componente essencial do planejamento patrimonial”, afirma Teixeira.
Ele recomenda que investidores criem inventários digitais detalhados, testamentos eletrônicos e planos de contingência.
“Em criptoativos, a ausência da chave privada equivale à perda total do patrimônio”, explica.
O precedente do STJ, diz ele, reforça a urgência de pensar a educação patrimonial digital como parte da gestão de vida.
O que muda a partir de agora
Com o reconhecimento do inventariante digital, o STJ abre caminho para uma reconfiguração da sucessão civil. O precedente cria um instrumento jurídico transitório, mas de alcance estrutural: reconhece que a vida humana — e o patrimônio — se estendem para o ambiente virtual.
O horizonte legislativo
O acórdão do STJ é um protótipo jurídico: uma solução funcional enquanto o país não cria uma regulação formal. Para Amanda Martins, o passo seguinte é político: “Agora que o Judiciário abriu a porta, o Legislativo precisa entrar e organizar a casa.”
Ela defende que a reforma do Código Civil em discussão no Senado inclua um Capítulo sobre Sucessão Digital, com conceitos claros de bens intangíveis, herdeiros virtuais e curadores de dados.
Já Amanda Fontes sugere um modelo de governança interinstitucional, que una o CNJ, o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e a sociedade civil.
“A herança digital não é só jurídica. É um tema de soberania de dados e cultura tecnológica”, diz Fontes.
As duas advogadas concordam que o precedente inaugura uma nova gramática da morte digital — o STJ deu o substantivo; cabe ao Congresso escrever o restante da frase.
Conclusão
O julgamento do STJ é mais do que um caso pontual. Ele redefine o conceito de herança no século XXI, transformando o legado digital em matéria de Direito e de ética. Ao criar o inventariante digital, o tribunal brasileiro dá nome a uma função que já existia de fato — a de quem protege o rastro de uma vida.
Mas a inovação vem com alertas: falta regulação, falta padronização e, principalmente, falta preparo. Enquanto o Congresso não legisla, a Justiça e os cidadãos caminham em terreno experimental.
O novo marco mostra que, na era dos dados, até a morte precisa de senha — e de intérprete jurídico. Durante séculos, o que morria com alguém era o corpo e o patrimônio físico. Agora, o que permanece é o rastro digital, fragmentado em servidores, nuvens e blockchains.
A criação do inventariante digital é o primeiro esforço institucional para compreender essa nova forma de imortalidade — a permanência dos dados como extensão da pessoa. E, como resume Amanda Martins, “a sucessão digital não é sobre o fim da vida, mas sobre o começo de uma nova responsabilidade jurídica: a de proteger a existência depois da existência”.