Como viver de renda?
Compartilhar no LinkedinCompartilhar no FacebookCompartilhar no TelegramCompartilhar no TwitterCompartilhar no WhatsApp
Compartilhar
Home
Educação Financeira
Artigos
Desdolarização e ‘asiandollars’: entenda o movimento de repatriação da moeda

Desdolarização e ‘asiandollars’: entenda o movimento de repatriação da moeda

É muito comum ouvir na mídia americana que não há alternativa razoável em relação ao dólar dos EUA. É certo que o dólar apresenta problemas, mas também é certo que as moedas de outros países são, até mesmo, mais problemáticas. Aqui, temos a visão do dólar americano associado à ideia de “cleanest dirty shirt” (a roupa mais limpa em um cesto de roupas sujas). 

Em um passado distante, cogitou-se a possibilidade de que a moeda chinesa ganharia, aos poucos, um maior espaço na corrente de comércio global.  

Acreditava-se que o IPO da fintech Ant Financial – pertencente ao poderoso grupo Alibaba – seria um catalisador de um processo em que o mundo passaria a comprar produtos chineses pagando em iuanes, a moeda local. Mas o IPO foi cancelado e o fundador do Alibaba Jack Ma foi forçado a um ostracismo que durou anos. 

Curiosamente, o saldo comercial chinês disparou para mais de 1 trilhão de dólares ao longo dos últimos anos. Todavia, muito pouco desse total foi transacionado em moeda chinesa. A China, definitivamente, não parece disposta a abrir a conta de capitais do país – o que seria um movimento essencial para ampliar a popularidade de sua moeda. 

Sendo assim, paira a questão: será que o tema de uma eventual “desdolarização” ainda se faz relevante?

Imagem de programa de TV: Reprodução da CNBC

Como podemos observar na simbólica imagem acima, em que a jornalista da CNBC Sara Eisen entrevista Jim O´Neill (famoso economista britânico que, enquanto atuava pelo Goldman Sachs, criou o acrônimo BRIC), o tema da dominância do dólar continua em pauta. No entanto, há uma discussão entre alguns estrategistas globais a respeito de um caminho alternativo muito interessante, onde o dólar desempenharia um papel paralelo. 

Desdolarização e os eurodólares

O estrategista veterano Charles Gave, da casa de pesquisa Gavekal, vem explorando uma tese fascinante inspirada em algo que aconteceu na Europa no início dos anos 1960.  

Naquela época, assim como ocorre nos dias de hoje, o resto do mundo estava sendo inundado de dólares. Isso ocorria devido ao fato de que os EUA estavam incorrendo em um tremendo déficit em sua balança comercial, o que acabava resultando em uma transferência significativa de dólares para os países exportadores.  

Nessa época, tais dólares ficaram estacionados em contas bancárias de bancos ingleses e estes aproveitaram para criar o que ficou conhecido como o mercado de eurodólar. Refiro-me a um mercado em que bancos ingleses realizavam empréstimos em dólares para empresas e pessoas físicas ao redor do mundo fazendo uso de reservas dolarizadas “estacionadas” em seus cofres.  

Foi um mercado que, ao longo dos anos, cresceu bastante, mas que, por ser baseado em uma moeda controlada pelos EUA, trazia consigo limitações no que diz respeito ao que é conhecido como multiplicador bancário. Em outras palavras, os bancos europeus envolvidos no mercado de eurodólares estavam sempre sujeitos às políticas monetárias estabelecidas pelo Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos EUA. 

O tempo passou e o mundo mudou. Hoje, em um raio de 4 mil quilômetros a partir de Hong Kong, temos um círculo imaginário que atende pelo nome de Círculo de Valeriepieris, que reúne mais da metade da população do planeta. Hong Kong, que está próximo ao centro deste círculo, é – junto com Cingapura – um dos principais centros econômicos da Ásia.  

E o mais importante: a ilha controlada pelos chineses é a emissora de dólares de Hong Kong, que é uma moeda que oscila em uma banda muito restrita em relação ao dólar dos EUA. 

imagem Gavekal

E não param de chegar dólares em Hong Kong, em um mundo em que o déficit comercial dos EUA está na estratosfera ao mesmo tempo em que o superávit comercial chinês supera a marca inusitada de um trilhão de dólares. Para se ter uma ideia, ao longo dos últimos dois anos, o saldo em dólares dos EUA dentro do sistema bancário da ilha cresceu em aproximadamente 250 bilhões de dólares, saindo de 750 bilhões para algo próximo a 1 trilhão de dólares atualmente.  

Os asiandollars

Assim, o estrategista Charles Gave argumenta que é uma questão de tempo para que – assim como aconteceu na Europa nos anos 1960 – aconteça algo parecido na Ásia nos próximos anos. Desta vez, será o surgimento do mercado de “asiandollars”.  

No entanto, diferentemente daquela época, os asiáticos poderão fazer uso de empréstimos feitos em dólares de Hong Kong, utilizando os dólares dos EUA como lastro.  

Os bancos asiáticos, ao contrário do que fizeram os europeus, poderão ampliar seus empréstimos, pois serão capazes de fazer uso de um multiplicador bancário inerente ao sistema monetário coordenado, não pelo Fed dos EUA, mas sim pela HKMA (Hong Kong Monetary Authority). 

Gave argumenta que o dólar de Hong Kong já conta com os atributos necessários para desempenhar o protagonismo proposto na tese acima. Entre eles, podemos citar: 

1. Um financiador de última instância

O Banco Central chinês (PBoC), além de possuir vastas reservas em dólares americanos, já possui acordos de swaps com diversos bancos centrais ao redor do mundo, inclusive o brasileiro. 

2. Um ativo livre de risco

Por meio dos Chinese Government Bonds (CGBs) de prazo de 10 anos – na última década, o retorno medido em dólares dos CGBs de 10 anos foi bem superior ao registrado pelos Treasuries dos EUA, os bunds da Alemanha e os JGBs do Japão. 

3. Uma menor volatilidade cambial

Aqui, a observação se aplica na relação entre a moeda chinesa e as moedas de países emissores localizados no Sudeste Asiático. Há quem diga que os representantes dos BCs destes países já administram tal volatilidade levando em consideração o preço da moeda de seu principal parceiro comercial, a China. 

Há fortes indícios de que, aos poucos, o capital estrangeiro (principalmente de asiáticos) irá retornar, mesmo que parcialmente, ao seu país de origem. Os EUA passaram por um período de 15 anos marcantes, em que registraram um crescimento econômico elevado com um baixo nível de inflação.  

Tudo isso fruto de uma revolução tecnológica (de smartphones e softwares) que, quando combinada com a revolução do “shale gas and oil”, produziu um milagre econômico e uma percepção de excepcionalismo. Mas, como diz o poeta, todo Carnaval tem seu fim.  

A repatriação

A festa americana pós-pandemia resultou em enormes abusos fiscais e monetários. Ainda que o dólar continue forte e a Bolsa pujante, o mercado de renda fixa dos EUA – em particular, o segmento associado a títulos do Tesouro de prazos superiores a 5 anos – está em um tremendo mercado baixista (bear market). A dependência dos EUA do capital externo está cada vez maior. A posição líquida dos investidores estrangeiros por lá cresceu para um patamar superior a 26 trilhões de dólares – uma alta de 100% em um prazo de somente 5 anos!  

A chegada de Trump ao poder e todos os conflitos a ele associados (tarifas, maior endividamento, interferência corporativa, etc) já contribuem para um movimento de repatriação de dólares por parte de investidores estrangeiros. Não é à toa que a performance de índices de ações da Alemanha, do Brasil, do Chile, da China e de outros países está superando a performance do índice S&P 500 em larga margem ao longo deste ano de 2025. 

Há quem diga que tal movimento seja somente uma reversão à média devido ao excepcionalismo do S&P 500 em 2024. Eu já penso que é o início de uma mudança de paradigma – em que o dinheiro tende a voltar ao seu lugar de origem. E se esse for o caso, a tese de um mercado de asiandollars faz todo sentido. 

Para conferir comentários diários do analista Marink Martins sobre mercado internacional, faça seu cadastro no EQI+, o aplicativo da EQI Investimentos: