Com jogo do tigrinho, apostas esportivas e tantos jogos financeiros online, jovens com menos de 30 anos somam mais de um terço (36,3%) dos pacientes atendidos por dependência em apostas no Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo. O efeito bet em si pegou tanto adultos quanto a nova geração que mais ocupa o espaço da internet.
O aumento do número de pessoas com dependência da Geração Z entre os anos de 2015 e 2023 tem chamado a atenção do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-Amjo), vinculado ao Instituto de Psiquiatria do HC. Segundo especialistas consultados pelo Estadão, a falta de fiscalização da publicidade abusiva e a ampliação do setor de apostas no País impulsionam o problema. Entre 2021 e abril deste ano, o número de bets atuando no Brasil passou de 26 para 217, de acordo com a plataforma Datahub.
Em 2015, quando o Pro-Amjo começou a tabular os dados, havia apenas um paciente com menos de 30 anos. Em 2023 esse número saltou para 58, de um total de 160 pessoas atendidas. Até julho deste ano a proporção entre a Geração Z e as gerações mais velhas se manteve estável em relação ao ano passado. De acordo com o ambulatório, muitos jovens já chegam para atendimento com um alto nível de endividamento, geralmente após a família descobrir o vício em jogos.
Em entrevista ao jornal Estadão, Maria Paula Magalhães, psicóloga especializada em Transtorno do Jogo no Pro-Amjo, acredita que a rapidez das apostas e a conexão das bets com esportes contribuem para o vício. “Hoje, vemos jovens de 20 e poucos anos muito endividados, contraindo dívidas e de uma maneira rápida”, observa Maria Paula.
O ambulatório de jogos do HC faz parte do Programa Ambulatorial dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti), onde trabalha a psiquiatra Nicole Rezende. Ela corrobora a opinião de Maria Paula e descreve a mudança no perfil dos apostadores. “Antes, era de adultos na faixa de 40 anos e, hoje, é de homens jovens, por volta dos 20”, diz a psiquiatra. “A pessoa aposta, e o resultado vem logo. Isso também é um grande fator de alerta. Quanto mais rápido, maior o risco.”
O acesso às bets esportivas pelo celular é um dos desafios do tratamento, pois facilita o vício. Mesmo assim, a psiquiatra Kátia Branco, também do Pro-Amiti, afirma que é possível desenvolver estratégias para interromper esse ciclo. “Tem aplicativos no próprio celular que impedem a pessoa de abrir certos sites. Outra alternativa é ficar sem o telefone e até mesmo sem os cartões de crédito”, afirma.
Alimentando o vício: recuperação de perdas
Começando a apostar em bets aos 15 anos com quantias pequenas, Fernando (nome fictício), estudante de ciências contábeis de 26 anos, não via seu dinheiro dinheiro, mas sim como ficha de aposta. O que inicialmente era uma diversão acabou se transformando em um vício, e ele passou a jogar todos os dias.
Após perder dois carros, um apartamento e uma casa de praia em jogos de azar, Fernando tinha certeza de que conseguiria recuperar seus bens. “Eu acreditava, assistia bastante esporte e tinha amor ao futebol. Achava que meus palpites sempre seriam vitoriosos”, relata. “Fazia loucuras para poder jogar, meu salário não durava três dias.”
Sem perceber que tinha uma doença, Fernando foi alertado por seus familiares, que sugeriram que ele participasse de uma reunião dos Jogadores Anônimos, um grupo de apoio para pessoas com dependência. Desde então, Fernando frequenta as reuniões, que acontecem uma vez por semana.
Fernando, que está há quatro meses sem jogar, contou que deixou de administrar o próprio dinheiro após entrar no grupo de apoio. Em acordo com a família, decidiu-se que ele não teria posse do cartão de crédito nem independência financeira.
O comportamento de tentar recuperar perdas, como Fernando fez, é um dos principais indicadores do vício, de acordo com Robson Gonçalves, economista comportamental e professor da Fundação Getúlio Vargas. “Isso é chamado de viés de custos irrecuperáveis. A pessoa pensa: ‘Não cheguei até aqui para desistir’. E acha que o que deu tantas vezes errado vai começar a dar certo”, alerta.
Os jovens são mais suscetíveis a desenvolver vícios porque o cérebro só está completamente formado por volta dos 25 anos. “O córtex pré-frontal é o último a se formar”, explica a psiquiatra Nicole Rezende.
Segundo o professor de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Dartiu Xavier, o impulso é o ponto de partida para que a pessoa comece a jogar. O ato de apostar gera uma sensação positiva, mas isso não dura para sempre. Eventualmente, a pessoa atinge um ponto de resistência ao prazer, e a ação passa a ser repetida de forma incontrolável.
Efeito bet não é investimento
De acordo com o levantamento Raio X do Investidor Brasileiro, realizado pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (Anbima) em parceria com o DataFolha, a geração Z lidera no segmento de apostas. Em 2023, 29% dos jovens dessa geração fizeram apostas esportivas.
Marcelo Pereira, sociólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que, no passado, o efeito bet eram apresentados como uma forma de investimento, atraindo principalmente pessoas de baixa renda. Nessa perspectiva, as perdas financeiras eram vistas como justificáveis por um possível retorno financeiro, embora essa expectativa nem sempre correspondesse à realidade.
“Algumas pessoas que racionalizam a sua prática (de apostar nesses jogos) sempre tendem a levar para essa questão do investimento. ‘Ah, mas são apenas R$ 5 que eu apostei e, no outro dia, ganhei R$ 20; outro dia, apostei R$ 10 e ganhei R$ 30.’ Mas essa pessoa normalmente não contabiliza as vezes em que ela apostou R$ 30 e perdeu R$ 60. Então, o cálculo é sempre um pouco impreciso e impressionista.”
Conforme o Mapa Serasa Crédito de maio de 2024, 16,7% das pessoas entre 18 e 25 anos que tomam empréstimos consignados usam o dinheiro para jogos de apostas na internet. “Para o pobre, o jogo assume uma perspectiva de investimento, de tentar ganhar dinheiro e multiplicar aquilo que se investiu”, diz Pereira. “Já para aqueles de classe média ou alta, a dimensão lúdica é mais importante no sentido de ser uma diversão que cabe no orçamento e é algo de que a pessoa gosta.”
Publicidade pode ser gatilho para efeito bet
Especialistas alertam sobre a influência de influenciadores e propagandas que promovem jogos de aposta como investimentos, atraindo pessoas com dificuldades financeiras. As apostas esportivas foram regulamentadas em 2023 através da Lei 14.790, enquanto os cassinos online, como o “jogo do tigrinho”, só receberam regulamentação no final de julho, por meio da Portaria nº 1.207. Conforme a legislação, as plataformas devem retornar em prêmios, pelo menos, 85% dos ganhos com apostas.
Além disso, as plataformas são obrigadas a informar aos apostadores sobre regras como o fator de multiplicação (que determina o valor do prêmio) e os métodos para obter prêmios, incluindo a ordem e a quantidade de símbolos necessários. As proibições incluem promessas de lucros futuros, a obrigatoriedade de jogar um jogo específico e a manutenção de um saldo negativo na plataforma pelo apostador. Os jogos regulamentados abrangem desde o “tigrinho” até jogos de colisão (crash), cartas, roleta, esportes ou corridas, dados e sorteios de bolas e números.
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) estabelece regras para anúncios de apostas, proibindo a promoção irresponsável dos jogos, a incitação ao excesso, promessas de ganhos fáceis ou ilusões de controle sobre os resultados.
Esses anúncios também não devem ser direcionados a crianças e adolescentes. Isso levou o Instituto Alana, uma organização de impacto socioambiental que defende os direitos das crianças, a denunciar a Meta – empresa responsável pelo Facebook, Instagram e WhatsApp – ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) no final de junho.
Segundo Rodrigo Nejm, psicólogo e consultor em educação digital do Instituto Alana, “as plataformas digitais já são viciantes, e os estímulos cerebrais gerados pelos jogos de azar são equiparáveis àqueles produzidos por drogas químicas”.
O MPSP informou que abriu uma investigação solicitando informações preliminares ao Instagram sobre o assunto. Na ocasião, a Meta afirmou que restringe o acesso a menores de 13 anos em suas plataformas e não permite conteúdos de apostas em dinheiro voltados para menores de 18 anos.
Jovem é presa por desviar dinheiro do avô para apostas
Uma jovem de 22 anos foi presa em Jussara, no noroeste do Paraná, no final do mês de julho, acusada de desviar R$ 179 mil da conta bancária de seu avô. A Polícia Civil do Paraná (PCPR) liderou a investigação e descobriu que a jovem utilizou o dinheiro para financiar suas apostas no “Jogo do Tigrinho”.
Segundo as autoridades, o crime foi cometido entre setembro e outubro de 2023. Nesse período, a suspeita efetuou várias transações, incluindo saques e transferências, utilizando os dados bancários do avô sob o efeito bet. Ela foi detida e deve responder pelo crime de furto mediante fraude.
A Polícia Civil alerta sobre os riscos associados aos jogos de azar online, que podem levar ao vício e a graves problemas financeiros. Recomenda-se que familiares e amigos estejam atentos a sinais de comportamento compulsivo e procurem ajuda profissional caso suspeitem de dependência.
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