O número de processos sobre o chamado “estelionato sentimental” tem registrado um aumento considerável na Justiça. Nesse tipo de situação, a vítima é induzida a entregar bens ou valores para outra pessoa com a promessa de constituir uma relação afetiva. Apenas em 2023, quase 80 decisões foram tomadas citando o termo. Até junho deste ano, foram proferidas 51, mostra pesquisa do Trench Rossi Watanabe.
As vítimas pedem reparação pelos danos materiais e morais causados. O tema ganhou mais notoriedade depois do chamado golpe do Tinder, no qual a vítima é atraída por meio de encontro marcado pelo aplicativo de relacionamento e é sequestrada. Os criminosos chegam a esvaziar as contas bancárias de correntistas por meio de transações via Pix.
A tendência, segundo o Trench Rossi, é haver mais de 100 decisões até o fim do ano, um crescimento estimado de 28% em comparação com 2023. Em 2022, foram registradas 85 decisões, praticamente o dobro do ano anterior, 2021, com 46 decisões.
A advogada Fernanda Las Casas, diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam) destaca que esses casos aumentaram, principalmente entre as mulheres que trabalham, estão sozinhas, com boa condição financeira e usam redes sociais para buscar um relacionamento. “São relações que ficam no online, muitas vezes os encontros nem acontecem”, diz
Depois de um tempo, afirma “o homem diz ter uma emergência, que aconteceu uma desgraça, para pedir dinheiro emprestado, porque a mãe adoeceu, porque precisa fazer uma cirurgia, precisa limpar o nome antes de casar com ela, quer montar uma empresa com ela de sócia para dar uma vida melhor”. No fim da história, diz Fernanda, ou são abandonadas ou descobrem a fraude, que, em vários casos, já foi aplicada a outras mulheres.
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Estelionato sentimental: pena vai de 1 a 5 anos
Atualmente, o estelionato sentimental é entendido como uma modalidade do crime de estelionato, tipificado no artigo 171 do Código Penal, com pena de reclusão de 1 a 5 anos, que sobe para de 2 a 4 anos se a fraude for cometida com informações fornecidas pela vítima ou por meio de redes sociais. O Projeto de Lei nº 6444, de 2019, e que foi apensado ao PL nº 4229, de 2015, tenta tipificar o estelionato sentimental, mas aguarda apreciação do Senado.
O número de registros de estelionato, em geral, bateu novo recorde em 2023, com cerca de 1,9 milhão de ocorrências, de acordo com o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho. Um aumento de 8,2% em comparação com 2022, onde foram registrados em torno de 1,8 milhão de ocorrências.
Segundo as advogadas que fizeram o levantamento sobre estelionato sentimental, Fernanda Haddad e Giuliana Schunck, sócias da área de Gestão Patrimonial, Família e Sucessões do Trench Rossi Watanabe, as vítimas costumam sentir vergonha e, por isso, demoram para agir. Isso faz com que, em alguns casos, os tribunais não reconheçam a prática de ilícito por ausência de provas de que a vítima tenha sido induzida a erro.
“É importante fazer um boletim de ocorrência, preservar as mensagens e áudios de WhatsApp e procurar um advogado para auxiliar de forma mais direcionada essa busca de provas para tentar obter indenização por danos materias, morais, seguido de procedimento criminal, se for o caso”, diz Giuliana.
Como as vítimas em geral são as mulheres, Fernanda destaca a necessidade de maior regulamentação do tema. “A ideia é que esses casos não caiam na vala dos estelionatos comuns”, afirma. Nesse sentido, o Judiciário começou a aplicar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que passou a ser obrigatório a partir de 2023.
Em um caso julgado em fevereiro, o juiz Gilberto Schafer, que atua na Comarca de Porto Alegre, seguiu o protocolo e considerou que a Lei Maria da Penha, sobre violência contra a mulher, poderia ser usada para desfazer a sociedade entre uma mulher e um suposto golpista. A mulher alegou ter sido vítima de estelionato sentimental e contraiu empréstimos de cerca de R$ 1 milhão para investir na empresa do “noivo”.
No caso, segundo o processo, a mulher conheceu o namorado em um aplicativo de relacionamento em 2019. Quando já estavam juntos, ele abriu uma empresa da agroindústria com o filho e pediu dinheiro à namorada, que virou sua sócia.
Ela alegou que estava apaixonada e “cega” por uma proposta de casamento quando pediu o empréstimo. Já teria alugado salão de festa e escolhido seu vestido de noiva, quando pediu uma prestação de contas e percebeu que era vítima de um golpe. Nesse meio tempo, ela verificou que o homem respondia a diversos processos por estelionato.
Com a ação, ela buscava apenas desfazer a sociedade. Mas é comum a vítima buscar a reparação dos valores dispendidos e indenização por danos morais. O caso tramita em segredo de Justiça.
Em decisão de 2023, a 2ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) confirmou sentença que deu indenização de R$ 12,9 mil por danos materiais e R$ 5 mil de danos morais. Nesse caso, a mulher também conheceu o parceiro nas redes sociais, onde ele se apresentava como policial rodoviário federal. No total, foram R$ 16 mil entre gastos com cartão de crédito e dinheiro em espécie dela para sanar as “dificuldades financeiras urgentes” dele. Ela nunca recebeu de volta qualquer valor.
Ao desconfiar de tantos pedidos de dinheiro, a mulher descobriu que o homem não era servidor público federal, mantinha outras relações de namoro e união estável e havia registro de boletins de ocorrência de outras vítimas já lesadas por ele.
Ao analisar o caso, os desembargadores mantiveram sentença que constatou ter sido comprovado que ele obteve a confiança e o afeto da vítima “com a nítida finalidade de auferir vantagens patrimoniais” (Recurso Cível nº 5001224-45.2020.8.24.0032).
Além das condenações na área cível, o golpista ainda pode sofrer ação na área penal – que pode gerar pena de reclusão. Recentemente, o 6º Juizado Especializado no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Manaus condenou um homem por estelionato sentimental a mais de quatro anos de prisão. A decisão ainda deu indenização à vítima de R$ 10 mil por danos morais e R$ 17,1 mil por danos materiais.
A vítima alegou que manteve o relacionamento por um ano e seis meses e o homem pedia dinheiro constantemente para doença, alimentação, aluguel e dívidas com agiotas. Em janeiro do ano passado, porém, ela teria descoberto que ele era casado e tinha uma filha de 12 anos.
De acordo com a juíza, “o réu abusou da confiança e afeição da parceira para obter vantagens patrimoniais, caracterizando o estelionato sentimental”. O número do processo não foi divulgado.
De acordo com a advogada criminalista Natasha do Lago, sócia do Ráo & Lago Advogados, essas situações têm sido enquadradas no crime de estelionato e os juízes podem recorrer à Lei Maria da Penha para dar medidas protetivas às mulheres. Nesses processos, diz, os juízes analisam se existem provas de que a mulher foi realmente enganada.
Para Fernanda Las Casas, somente as condenações criminais podem dar mais efetividade para inibir essa prática. “O valor das indenizações na esfera cível são baixos”, diz. “De repente sentindo que podem perder a liberdade pode ser mais efetivo”, acrescenta.
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