O mercado de relógios de luxo atravessa um momento de profunda transformação. O que antes era dominado exclusivamente por aficionados e colecionadores apaixonados por mecanismos complexos, hoje também atrai um público movido por status, liquidez e valorização. Ricardo Ramos, especialista com décadas de experiência na relojoaria de alto padrão, testemunhou essa evolução desde os anos 1980 e compartilha uma perspectiva privilegiada sobre o setor.
Iniciando sua trajetória em 1985, Ramos vivenciou um período crucial: “Foi bem no começo da virada do mundo do luxo relojoeiro suíço, em cima da crise causada pelos relógios quartzo japoneses que dominaram o mercado dos anos 1970 e 1980 com sua precisão e baixo custo”. Naquela época, trabalhando na joalheria Natan, uma das grandes referências do segmento, ele acompanhou o ressurgimento das marcas suíças tradicionais.
A indústria relojoeira precisou se reinventar.
Um dos protagonistas dessa virada foi Nicolas Hayek, que revolucionou o mercado ao criar o Swatch, um relógio quartzo com design e precisão suíça. Essa inovação reoxigenou o mercado suíço e abriu espaço para o retorno da elegância mecânica, da tradição e da exclusividade que colecionadores buscavam.
Ramos destaca que “uma coisa era a praticidade dos relógios a quartzo japoneses e outra completamente diferente era a complexidade, a elegância e a tradição dos movimentos mecânicos Suíços”.
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Ao longo de sua carreira, o especialista trabalhou com marcas icônicas como Piaget, Cartier, IWC, Panerai, Rolex, Patek Philippe, Vacheron Constantin, Hublot, entre dezenas de outras. Foi nesse cenário efervescente que desenvolveu sua paixão por este universo intrigante.
O fenômeno dos relógios hypados e a nova geração de consumidores
Atualmente, o mercado de timepieces de alto padrão concentra-se em algumas poucas marcas de prestígio e liquidez. Rolex, Audemars Piguet, Patek Philippe, Richard Mille e Vacheron Constantin dominam o interesse dos novos consumidores de relógios de luxo.
Ramos admite sentir-se “um pouco triste com a predominância de algumas poucas marcas de prestígio e liquidez”, não porque elas não mereçam o reconhecimento, mas pela condição dessa concentração.
Alguns modelos específicos dessas marcas viraram verdadeiros hypes entre os compradores mais recentes. Estes visualizam nos relógios o status, o pertencimento, além da liquidez e valorização, muitas vezes em detrimento da paixão pelos mecanismos e suas histórias.
Para o especialista, essa visão reflete uma sociedade em transformação. A tecnologia e o mundo digital fizeram o dinheiro mudar de mãos rapidamente, criando uma nova geração que começou a se apaixonar por esse universo, mas que não quer perder dinheiro.
Segundo Ramos, “esta geração nova começou a se apaixonar por este mundo, mas não quer perder dinheiro, porque não são ricos de berço e não conviveram com histórias sobre este mundo”. A pandemia intensificou esse fenômeno. A baixa produção dos relógios de luxo gerou escassez de produtos, o que criou filas de espera e, consequentemente, desejo. O desejo frustrado pela escassez acabou gerando ágio.
A especulação, antes incomum nesse mercado, passou a ser realidade. Ramos lembra que alguns modelos, como o Rolex Daytona, sempre tiveram esse comportamento, mas agora o fenômeno se expandiu para outras peças.

A história x o storytelling de marketing
Uma das mudanças mais significativas no setor diz respeito à narrativa das marcas. Ramos é enfático ao afirmar que “o storytelling hoje em dia é muito superficial e dirigido com intuito muito forte de formar uma opinião e narrativas criadas sob medida”.
No passado, as histórias surgiam naturalmente das necessidades reais. Não se falava em storytelling criado por marketing, segundo o especialista, simplesmente contavam-se histórias reais de motivações que exigiam respostas dos fabricantes para atender necessidades prementes de uma sociedade em desenvolvimento. Fossem nas áreas militares, nos esportes, na aviação, no automobilismo ou na vida civil, os produtos eram criados em necessidades concretas, fatos que davam origem a histórias duradouras e atemporais.
Enquanto as histórias originais nasciam de desafios técnicos e necessidades práticas genuínas, muitas narrativas contemporâneas são construídas artificialmente para criar desejo e posicionamento de marca.
Smartwatches e o futuro da relojoaria tradicional
A questão dos smartwatches surge frequentemente em discussões sobre o futuro da alta relojoaria. Para Ramos, esse debate reedita a polêmica histórica entre relógios a quartzo e mecânicos, e terá o mesmo desfecho.
Em sua avaliação, cada tecnologia ocupará seu espaço, pois atendem anseios diferentes e se complementam.
Os smartwatches atendem necessidades do mundo digital moderno, rápido e eficiente. Já a alta relojoaria suíça atende outra necessidade: “a de pertencimento e o desejo apreciar a arte e o glamour deste universo”. A engenharia mecânica e as soluções que artesãos e watchmakers desenvolvem ano a ano garantem a herança desse mundo encantador.
Desde 2005, atuando na Grifith Joalheiros, representante oficial de marcas como Cartier, IWC, Panerai, Tag Heuer e Breitling, Ramos tornou-se um divulgador dessas histórias maravilhosas que nutrem o universo dos timepieces de alto luxo.
O amadurecimento do consumidor brasileiro
O mercado brasileiro está passando por uma fase interessante de maturação. Segundo Ramos, “o consumidor brasileiro está amadurecendo muito rápido e cabe a nós a divulgação desta cultura secular”. O país vive um período de transição, onde consumidores que já estão no mundo dos produtos hypados há algum tempo começam a sentir necessidade de sair do óbvio, do ponto comum, e passar a formar opinião própria.
Esse amadurecimento levará à eleição de novos hypes. O especialista havia percebido, por exemplo, que o Vacheron Constantin Overseas se tornaria o próximo fenômeno, antecipando a informação para alguns clientes antes do ágio.
“A previsão não era difícil, pois o modelo atende premissas fundamentais: marca de prestígio incontestável, história e tradição, desenho de Gerald Genta (design consagrado), assim como os Ingenieur da IWC, os Royal Oak da Audemars Piguet, os Nautilus e Aquanaut da Patek Philippe”, explica.
Rolex: a força simbólica e seus paradoxos

“A Rolex continua sendo referência máxima de prestígio. Uma marca tão forte que virou sinônimo de relógio. Atualmente, uma fundação sem fins lucrativos, que nasceu em 1905 e sempre teve como premissa o compromisso com a qualidade e desenvolvimento tecnológico, fruto da paixão de Hans Wilsdorf e Alfred Davis. Curiosamente, foi fundada em Londres e só migrou para Genebra em 1919”, diz Ramos.
A história da marca está ligada a grandes desafios, como a exploração do Himalaia por Edmund Hillary e o registro do carro mais veloz do mundo em 1935, pilotado por Sir Malcolm Campbell a 485 km/h.
Porém, Ramos levanta uma crítica importante: “Uma marca tão desejada e respeitada, não pode submeter seus aficionados a uma fila de espera inacessível na prática, que já virou meme na internet”. Para ele, o desejo pela escassez tem limites e representa uma falta de respeito ao consumidor quando estendida por muito tempo.
A Rolex tornou-se o desejo universal, independentemente do nível de conhecimento. “Begginers, conoisseurs, simplesmente usuários, todos desejam um Rolex, que ganhou um rótulo de primeiro relógio”, explica Ramos. Ao ver alguém com um IWC, Panerai ou Cartier, o especialista imediatamente pensa que a pessoa já deve ter um Rolex e está mais seletiva, provavelmente um aficionado.
IWC: engenharia e inovação tecnológica

A IWC (International Watch Company) representa uma história fascinante de determinação. Florian Ariosto Jones, um americano fabricante de relógios de ponto em Detroit, enfrentou todos os tipos de boicotes para fundar uma fábrica de relógios de pulso na Suíça. Segundo o especialista, a trajetória de um verdadeiro forasteiro até se tornar orgulho nacional é repleta de inovações tecnológicas fortemente ligadas à engenharia industrial.
Esse conceito que Florian trouxe da indústria americana marcou os passos da IWC, que se desenvolveu em Schaffhausen, extremo norte da Suíça, quase fronteira com a Alemanha. Após ser rejeitado na região típica dos relógios suíços, o Vallée de Joux, conseguiu condições para instalar a indústria nessa localidade.
“As primeiras inovações tecnológicas da marca foram forjadas em parceria com a Luftwaffe, a força aérea alemã, desenvolvendo equipamentos de bordo para aviões. Depois, a inovação tecnológica estabeleceu parcerias com o automobilismo, e até hoje a colaboração com a Mercedes na Fórmula 1 rende frutos para ambos os lados”, conta Ramos.
Recentemente, o filme F1 estrelado por Brad Pitt, sobre o piloto fictício Sonny Hayes, marcou o ressurgimento do modelo Ingenieur, reafirmando sua vocação para inovações tecnológicas e engenharia.
Como resume Ramos: “Não dá para pensar em IWC e não pensar em Engenharia”.
Cartier: a intersecção entre joalheria e alta relojoaria

A Cartier transita muito bem entre relojoaria e joalheria, uma vez que seus relógios são verdadeiras obras de arte desenvolvidas com todos os detalhes próprios da alta joalheria. Suas peças têm histórias seculares.
O relógio Santos, por exemplo, de 1904, teve seus desenhos atualizados e continua arrojado e moderníssimo apesar de seus 121 anos de idade.
Foi criado a partir de uma necessidade real: Santos Dumont precisava de um relógio de pulso para substituir o relógio de bolso, mantendo suas mãos desocupadas ao desenvolver aquilo que viria a ser uma das invenções mais importantes do mundo. “Isso reafirma que quando um produto é desenhado para atender uma necessidade real ele cria histórias verdadeiras e duradouras”, destaca Ramos.
O relógio Panthère de Cartier, hoje queridinho das mulheres, é homenagem ao ícone da joalheria: a pantera. Uma linha de joias com este tema inspirou a criação do relógio que completa a linha, unindo perfeitamente o DNA joalheiro da marca com a expertise relojoeira.
Edições limitadas e colaborações: estratégia ou exagero?
Muitas marcas estão apostando em séries limitadas e colaborações com ícones e celebridades. Segundo Ramos, isso pode ser muito bom quando a marca escolhe uma colaboração que realmente retrate o espírito da marca e crie desejo por aproximação. Porém, não se deve usar esse recurso exageradamente.
Marcas como Hublot, que o especialista já representou, passaram um pouco dos limites e tiveram alguns problemas por conta disso. A série limitada incita o desejo por exclusividades, mas quando uma marca faz muitas colaborações, acaba com o conceito de exclusividade que deveria preservar.
O equilíbrio entre criar peças especiais e manter a exclusividade é delicado. Colaborações bem pensadas agregam valor e contam histórias relevantes. Colaborações excessivas diluem o prestígio e confundem a identidade da marca.
O futuro: Vacheron Constantin e a cultura do consumidor
Para o futuro dos relógios de luxo, Ramos aposta fortemente na Vacheron Constantin. A marca tem todas as características para se tornar ainda mais hypada: tradição, qualidade, verdade nas suas histórias e desenhos atemporais.

O especialista acredita que os consumidores irão se aculturar cada vez mais. As informações, principalmente por conta da internet, e os esforços dos profissionais do setor em fazer o consumidor entender a diferença entre o bom e o da moda, farão a diferença.
“Quando o sarrafo sobe muito, a qualidade verdadeira aparece e determina na escolha”, afirma.
A visão se baseia na crença de que a nova geração de consumidores, que entrou no mercado buscando liquidez e status, gradualmente se encantará pelo verdadeiro espírito da indústria relojoeira. Serão os futuros amantes e colecionadores dos timepieces suíços de alta qualidade, abrindo espaço novamente para todas as marcas, não apenas as hiperpopulares do momento.
A engenharia mecânica, as complexidades técnicas, as histórias seculares e a tradição artesanal têm um poder de encantamento que transcende as modas passageiras. A exemplo do que aconteceu com a revolução do quartzo, quando o verdadeiro espírito relojoeiro prevaleceu, Ramos confia que a essência da alta relojoaria continuará conquistando gerações.
A arte que resiste ao tempo
O universo dos relógios de luxo é muito mais do que um mercado de produtos de alto valor. Representa a preservação de técnicas centenárias, o respeito à tradição, a busca pela perfeição mecânica e a celebração de histórias que atravessam gerações.
Como observa Ricardo Ramos, a verdadeira diferença está em produtos desenhados para atender necessidades reais, que criam histórias verdadeiras e duradouras.
Em um mundo cada vez mais digital e acelerado, os timepieces mecânicos suíços representam valores atemporais: paciência, precisão, arte e exclusividade.
Seja no pulso de um colecionador experiente ou de um jovem recém-chegado a esse universo, cada peça de alta relojoaria carrega consigo não apenas a função de marcar horas, mas a capacidade de contar histórias, expressar identidade e preservar um legado que resiste magnificamente à passagem do tempo.
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